segunda-feira, 15 de abril de 2013

A Parada de Ônibus #3


Esta é a parte 3, para ler a parte 1 e a parte 2, clique nos links.



O homem com a bolsa de couro velha, sempre se mostrava inquieto. O seu relógio prateado enorme sempre estava à altura dos seus olhos para que ele consultasse o horário. Ele tinha a pele morena e marcada por o que provavelmente deve ter sido uma crise terrível de acne na adolescência. Creio que ele deva trabalhar numa dessas agências onde todos seus funcionários são uniformizados porque sempre o encontro vestido com uma camisa social azul e calças pretas. Suas canetas estão guardados num protetor de bolso na sua camisa, o que parece terrivelmente inapropriado. Meu avô morreu quando eu tinha seis anos, e me lembro pouca coisa dele, mas uma dessas poucas coisas é a caneta presa, sempre pronta para assinar, no bolso da camisa. 

De hora em hora seu celular sempre toca e ele sempre está conversando com alguém. Espero que seja um barbeiro, porque aquele bigode Professor Girafales distrai muito a vista das pessoas. Imagino se ninguém nunca teve a coragem de falar para ele se livrar daquela tarantula em seu rosto. Sei que é falta de educação, mas não consegui evitar de escutar uma de suas conversas. Era sobre uma carga de armações que ele trouxe de uma viagem e que estava levando para quem ele estava conversando no celular.

Trabalhava de oculista provavelmente. A vida deve ser difícil, não por causa do bigode (esquece do bigode, Marcos!), mas por causa de como tudo deve ter acontecido. Apesar do ensino público ter sido notável nas décadas anteriores, ele não conseguiu concluir todos os estudos. Vem de uma família de retirantes e sua mãe teria sido a primeira a chegar em Recife para uma vida melhor. Sua irmã engravidou logo e a vida para a sua mãe começou a ficar difícil.

Para uma mulher, ainda mais vinda do sertão, numa cidade marcada pelo preconceito e oligarquias, os trabalhos que conseguia eram os mais mal pagos. Trabalhou em tudo que conseguia, foi faxineira, lavandeira, garçonete, secretária, caixa... Nada era ruim ou bom demais para ela, tudo que lhe importava era que seus filhos pudessem ter roupas bem costuradas e três pratos de comida todo santo dia, um antes de ir trabalhar cedinho, outro que deixava na panela para que seus filhos se servissem no almoço e o último, onde finalmente poderia se alegrar junto com sua família depois de dias tão difíceis.

Sua irmã se iludiu demais. Aos dezesseis queria se tornar uma aeromoça. A época chegava e ela precisava de um emprego, mas as suas ambições miravam alto, aliás, miravam nos aviões que via todo dia passando pela janela do seu quarto. Menina ruim, era essa. Tinha vergonha de sua família, nunca contava aos amigos que fizera na praia de Boa Viagem naquele carnaval, ainda mais para seu namorado. Aquele namorado era quem deveria tirar ela da pobreza, quem finalmente poderia dar a infeliz uma casa grande e bonita para que pudesse ficar quando seu trabalho como aeromoça a desse um tempo de paz. 

Pelo visto a gravidez repentina, no mês de agosto do mesmo ano que conhecera o namorado, não fora suficiente para agarrar o garoto. Ele desapareceu assim como a história de que um dos herdeiros de uma das famílias mais proeminentes do Recife teria engravidado uma garota suburbana filha de ninguém. 

Essa história nunca deveria ter saído da boca de ninguém.

Assim que o seu sobrinho nasceu, sua mãe passou a ter três trabalhos, fez questão de cuidar do seu netinho. Nunca que ela iria culpar uma criança pela inconsequente mãe. Costurou todas pecinhas de roupa com o maior cuidado e mimava o pivete com tanto amor que o homem do bigode e da bolsa de couro estava quase certo de que o bebê chorava de sufoco, não de fome.

Sua mãe foi atropelada quando uma Brasília a acertou de lado quando descia a ladeira sem freio. Todos os empregos foram embora. Mulher, sertaneja, de cor e agora manca, nem o mercadinho do pastor da igreja da esquina queria dar a ela essa benção. “Deveria ter pago os dízimos, Dona”, era tudo que escutava.

Agora católica, passava seus dias só em casa.

O homem do bigode começou a trabalhar logo, largou a escola aos dezesseis e pediu ao tio que o deixasse trabalhar em sua ótica. Trabalhava no estoque pela manhã, no balcão de tarde e nas contas no comecinho da noite. O tio o explorava, mas ao menos o pagava bem.

O sufoco acabou quando a irmã abandonou a família para se casar com um mineiro que conheceu em uma festa de uma amiga de uma amiga que tinha conhecido na praia. Rico e iludido, o homem conseguiu alguém para se desgraçar. Ela se foi para Minas Gerais, deixou o filho para trás para que fosse criado pelo irmão e a mãe. Ainda recebem cartas, mas eram só para ter certeza de que sua família em Recife não estivesse precisando de nada dela.

Se mudaram para um prédio na Ilha do Retiro, graças ao trabalho duro do homem da bolsa de couro. O sobrinho era como seu filho e morava com ele, sua esposa e sua filha que via o primo como um irmão mais velho.

Herdou uma das óticas do seu tio. Não o rendia muito dinheiro, contanto que não tivesse um carro, o que seria um gasto inconveniente, a vida poderia seguir muito boa. Talvez melhor, se não fosse por aquele bigode.

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